sexta-feira, 12 de agosto de 2011

AS VIRTUDES DO VICIO

Sobre sua poltrona de lata e seu altar de alumínio com seus santos de vidro expostos como troféus de guerra, Emanuel bebe e pensa na vida, dentro do templo que ele chama carinhosamente de boteco. Ele pensa na vida como se tivesse chegado ao ponto final, porém não pensa no ponto final, mas sim no passado, no caminho que tomou e honrado está por ter chegado ali. A memória está boa.

Ele lembra quando tinha os dentes pouco manchados pela nicotina e o nariz limpo, a cabeça com muitos cabelos voava longe de frente pro mar, sentado na areia enrolando seu primeiro baseado. O primeiro do dia. Apenas mais um depois de muitos outros dias passados e futuros.

Emanuel agora está em uma festa. Tem amigos com ele e o ritmo que entra pelos ouvidos não é mais forte que o ritmo que entra pelo nariz e acelera o coração.

Agora ele lembra de uma sensação de vitória, quando descia no aeroporto e entrava nas ruas desertas falando outra língua, um novo cardápio. Speed-ball! Sorria como criança que aprendeu um palavrão novo. Sorria e falava. Falava e bebia. Acordava com saudade de casa.

Desceu do avião novamente e foi para a praia. Transou com uma índia e uma cigana. Como era bom o carnaval. A cigana tinha no rosto o suor e a lua. A outra apenas batom. Na língua de ambas um microponto para cada uma. As estrelas se foram ao chão, parecia o lugar certo para elas. Não era ilusão. Então a cabeça dele saiu para passear.

De terno, gravata e o cabelo tão pouco e cinza, obedecia a alguém que apenas ordenava e nunca aparecia. Apenas impunha. Brincava de ser Deus, porém existia. Os papeis voavam da sua mão e, o escritório de paredes e moveis brancos de ensurdecer, começou a encher de água. Sentiu afogar. Acordou com a índia e a cigana puxando o seu corpo para longe da maré que agora baixava novamente enquanto o sol nascia.

Um dia acordou e tentou lembrar esse sonho. Não lembrou. Então descobriu que não era sonho, era uma visão. Poderia ser ele, longe dos vícios, se um dia houvesse escolhido outro caminho. Pensou que então poderia ter se afogado em compromissos. Era uma boa interpretação. Mas descartou ser uma visão do futuro, isso jamais.

Agora lembra que logo é segunda. E ele ainda no bar, em frente às garrafas, na cadeira de lata fria. Sente saudade de casa, mas está em casa, é só caminhar. Levantar é quase impossível. Ele tenta, consegue e ainda paga o que bebeu. Leva no caminho mais 600 para a viagem, pra garganta não secar. Caminha pela velha praia, dorme na areia.

Pela manhã a praia está diferente. A cigana e a índia o acordam novamente depois de 30 anos, mas dessa vez não é carnaval.

domingo, 26 de junho de 2011

Nova Ordem Mundial

Nas férias do ano de 3011, resolvi usar o dinheiro virtual (dados aos sobreviventes do último cataclismo para tentar evitar uma nova extinção do capitalismo pela segunda vez nesse mesmo século) e investi em uma “zona habitacional orbital”, afim de nunca mais depender do Governo Total em caso de um novo grande desastre ou pandemia. Queria fugir dessa instabilidade e o preço do lançamento doméstico estava convidativo. Embora fosse um serviço da base mexicana, em voos domésticos eles sabiam fazer um bom trabalho, mesmo que não tenham ajudado muito nas batalhas estelares contra a Nova URSS – quando os Estados Independentes da América do Norte incluíram o México na Ordem, em troca de uma “pequena ajuda” do exército mariache com soldados para a linha de frente dessa não oficial III Guerra Mundial, que não foi declarada mundial pois se tratava de uma guerra extraterrestre por espaço lunar. A guerra acabou do dia para a noite, quando a EIAN descobriu que era mais fácil construir uma base orbital, que dividisse espaço com os satélites, do que uma base lunar, então a Nova URSS reconheceu a inteligência norte americana e tentou comprar os serviços para construir também sua base orbital, mas a Ordem não vendeu e aos poucos a Nova URSS foi se desmanchando, até que a EIAN se tornou o Estado Total.

Enfim, fizemos a viagem, a família toda. Vimos cometas chocarem-se, explosões de
supernovas, ouvimos o barulho do Sol. Eu não ia com a família para a orbita terrestre há anos – na última vez, nosso filho ainda estava na proveta e a Hari nem sabia dessa surpresa que eu tinha preparado, já que ela sempre reclamou por eu ter feito vasectomia, então eu comprei esse presente pra ela. Logo nos casamos. Nessa viagem levei a Hari para conhecer um aparelho que permitia o contato extradimensional com pessoas que já haviam “partido” – agora essa palavra fazia mais sentido nesse caso, pois tínhamos total certeza de que foram para outro lugar. Com esse aparelho, com base nas leis da física quântica, podíamos fazer contato com essas pessoas que já não estavam mais na mesma dimensão que a nossa. Logo que fizeram essa descoberta, a ciência, a fisica e a tecnoligia pareciam ter chegado no seu ponto mais alto, porém em seguida a questão mudou de “para onde vamos?” para “como chegamos lá?” e logo novos cientistas-filósofos surgiram. Junto com esse aparelho, chegou a banalização do suicídio, pois o ato passou a ser encarado como uma forma de viagem (sem volta) para uma nova dimensão – mesmo que alguns partam para dimensões onde não podemos fazer contato.
Quando o sol iluminava o lado da terra por onde a base estava passando, usávamos uma espécie de óculos de lente vermelho escuro, que nos permitia olhar a terra sempre repleta de furacões por todos os lados que mal podíamos ver os continentes, mas era sempre uma experiência diferente. Gostamos tanto da vida na Base, que continuamos aqui até hoje, ainda estamos nos acostumando a ver a terra de longe, às vezes parece que fomos feitos pra viver somente lá, mas a Ordem nos oferece tudo por aqui, nosso dinheiro rende, diferente do planeta, que de tempo em tempo nos obriga a pedir ajuda pro governo.

A
Hari tem um arquivo que fala sobre dias ensolarados naquele planeta, mas eu duvido que isso um dia tenha existido. Ela acredita também que um dia um homem lutou contra a Ordem IEAN, quando a ordem se chamava apenas EUA e que esse homem foi morto por eles, mas depois disso a Ordem perdeu força por anos, quando começaram os cataclismos. Eu não acredito nesse arquivo que ela tanto lê e costuma dizer que antes de dormir é bom falar o nome dessa pessoa algumas vezes pois, segundo o livro dela, isso ajuda em alguma coisa. Para mim a terra sempre foi como é agora, ninguém lutou contra a Ordem, com exceção da Nova URSS - e a Ordem acabou com eles sem usar armas. Ninguém atacou a IEAN, nem nunca vai atacar.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Zapeando

- Conflito na Líbia já dura zap... Aprovado projeto de lei que zap... Grávidas em Belo Horizonte zap... Estudantes reclamam por uma zap... Um golaço de fora da área. O resultado final foi três à dois. Veja a seguir zzap... Com essa música recebeu o título de Sir. (oh, look at all the lonely people...) zzap... “Vem comigo” zap... Você fica agora com a décima posição zzzap... And our lives are forever changed/We will never be the same/The more you change the less you feel/Believe, believe in me, believe/Believe that life can change/That you're not stuck in vain/We're not the same, we're different tonight/Tonight, so bright. Tonight zzzap… Zzz...

domingo, 29 de maio de 2011

Dias de noites difíceis

Maria chegou em casa cansada, sacola pesada, frutas de fim de feira. Encontrou seu marido bêbado, como jamais havia visto. Soltou a sacola no chão e tentou colocá-lo em baixo da água gelada do cano alto do banheiro imundo. Ele resistiu, ela insistiu, ele pegou um garfo e cravou entre suas coxas. Maria não gritou, não quis acordar a filha mais nova que dormia no colchão ao lado do fogão a lenha. Ela retirou o garfo friamente e colocou suas roupas em uma mochila verde velha e saiu, deixando os filhos e o marido bêbado desacordado no chão do banheiro. Maria nunca mais voltou pra casa.



Paulo tinha 23 anos e com exceção da empregada adolescente, jamais havia penetrado entre outras coxas. Seu pai lhe cobrava mais empenho, mas as mulheres que Paulo conhecia jamais aceitaram um convite para entrar no carro que seu pai o emprestava toda sexta-feira à noite. Então naquele mês de junho ele cansou das tentativas em vão com patricinhas exigentes que só queriam o pó e jamais correspondiam com os atos esperados por ele, pegou a chave e desceu até a garagem.
Embebido em Scotch e coragem, rumou às ruas vermelhas da cidade quente.
Paulo entrou no primeiro prédio de corredor estreito e escadaria vermelha que passou pela frente – o primeiro com estacionamento exclusivo, na verdade. Não queria correr o risco. Entregou a chave e subiu. Não selecionou, apenas pegou por ordem de chegada. A primeira que viu. No quarto de vidraças quebradas com divisórias de isopor, encarou a ferida entre as pernas da puta como se não lhe passasse pela cabeça a possibilidade de ser cancro mole.



Cardoso bebia uísque e pensava na sua esposa. Desconfiava de um possível envolvimento dela com um dos empregados da empreiteira, o peão de obra que cumprimentava sua mulher sorrindo. Chamou o empregado em sua sala e mandou ele tomar no cu. Empurrou uma carta de demissão sobre a mesa. Saiu da sala e foi para o banheiro cheirar a cocaína que encontrou por acaso no porta-luvas do carro que havia emprestado para o filho na semana passada.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Anda difícil viver na cidade

Ainda lembro quando eu olhava pela janela e escorria sangue pelo meu nariz. Diria até que isso foi ontem. A noite tinha um cheiro realmente muito forte. Daí eu saía pra rua e ia beber com alguém. Então alguém chorava. Alguém acendia um baseado e ninguém falava mais nada. A calçada é mais confortável antes dos trinta. Acho que comecei minha vida no segundo tempo. Aos quarenta e cinco já vai estar tudo decidido. Até que aos cinquenta tudo acaba. Ou vou ser substituído, porque já vou estar cansado. Alguns acreditarão em uma próxima temporada. Aplausos e lágrimas da torcida.

Liguei pra Lívia esses dias. Ela riu quando ouviu minha voz. Nunca mais senti o cheiro dela. Amanhã vai fazer frio e eu tenho que tirar cópia da chave. A Lívia te mandou um beijo – falei pra minha mãe. Meu cachorro não come nada há dois dias.

Para aliviar a fome comi um cachorro quente. Duas horas depois já estava com fome novamente, nada como era antes. Essas coisas me remeteram a um passado estranho, alguma lembrança que na verdade não consigo lembrar. Meu time fez cento e trinta e um anos hoje. O pessoal aqui já está acreditando bem mais na próxima temporada.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Pneumotórax

Tenório mata formigas desde os cinco anos. Agora com trinta e três, Tenório se profissionalizou. Ele não tem amigos, ele não tem mulher, Tenório é um homem fraco e com problemas pulmonares. Tenório fuma, sendo assim, presume-se que ele tenha uma constante vida interior. Ele pensa no passado em busca de expectativa para o futuro. Tenório acha a vida inútil. Tenório mora sozinho e dorme na cama onde sua mãe dormiu o último sono.
Esse corpo franzino passeia pelos parques de Porto Alegre em busca de formigueiros, vespeiros e qualquer outro ninho de praga. Ele um dia mirou seu canhão de inseticida para ele mesmo, sem pensar em suicídio, pensava apenas em resumir a queda que é a vida. Tossindo demais, não conseguiu mirar seu rosto. O veneno não alcançou suas mucosas e ele não teve êxito na tentativa.
Tenório herdou da mãe uma coleção de discos de Mercedes Sosa e ele canta todo dia "Gracias a La Vida" com ironia, toma banho com sabão e vai dormir. Sua casa fede a veneno.
No apartamento ao lado mora uma moça chamada Verônica. Ele sempre ouve Verônica reclamar das baratas quando fala ao telefone com uma amiga, sempre a mesma amiga. Um dia ele oferece seus serviços a ela, promete exterminar qualquer inseto daquele apartamento. Ela aceitaria e ele faria sexo pela primeira vez. Mas ela não aceita, pois tem medo dos olhos estrábicos de Tenório e de sua cicatriz por conta de uma traqueostomia. Ele nota a distância que ela toma para responder e mentir sobre a existência das baratas. Ela nega o fato de existirem esses insetos no seu apartamento e, assustada com a presença inesperada do estranho vizinho, fecha a porta.
Tenório ouve Verônica cantar no chuveiro todos os dias. O som sai da janela do banheiro dela e entra pela janela do quarto dele.
Um dia o canto alto de Verônica deu lugar a um choro baixo, típico de um ataque de pânico. Tenório pode ouvir, pois escutava com atenção a cantoria da vizinha enquanto tentava esquecer sua tentativa frustrada de prestar serviço a ela, então logo imaginou ser uma invasão daqueles insetos que Verônica tanto reclamava ao telefone.
Tenório viu ali a chance de mostrar sua capacidade de executar um bom serviço.
Ele teve uma ideia e não hesitou por em prática. Tenório dependurou-se no parapeito da janela do seu quarto e colocou a mangueira do canhão de inseticida – assim ele chamava o artefato – na janela do banheiro da moça que continuava a chorar e disparou um litro de inseticida para dentro.
Tenório suspirou ao ver o trabalho completo e bem feito e ouvir o silêncio pleno tomar conta do banheiro vizinho, com exceção de Oh! You Pretty Things, que continuou tocando no rádio da vizinha. Tenório acabava com mais uma praga na sua vida.