quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Nada acontece na vida de Sandro



Naquele tempo, costumava dizer seu pai, as coisas eram diferentes. Essa afirmação vinha sempre após um conselho dado pelo velho que balançava em compasso com o relógio no fim de tarde do domingo que era o ultimo daquele mês. 

Caminhando e ouvindo as tabuas sob seus pés rangerem, foi até onde o velho estava sentado e se despediu. No portão pediu para que Ivone não esquecesse a janela aberta.
Já em casa, ligou a TV e o chuveiro, abriu uma cerveja e desistiu do banho. Dormiu no sofá o último sono daquele mês quente.

O ônibus cumpria seu primeiro horário recolhendo passageiros na parada em frente a casa de Sandro. Em sincronia com a porta dianteira do veículo, ele abria os olhos no mesmo horário durante toda semana. O ônibus partia e Sandro levantava para cumprir a rotina da semana que acabava na quinta.

Sandro chegou no mesmo horário de sempre, comentou sobre o feriado de sexta-feira, assim como já havia feito com o camelô na calçada, com o porteiro na entrada do prédio, com o colega do andar de cima no elevador, e agora entrava na conversa sobre o feriado também a secretária, que só repetia o que Augusto falava, concordando com a cabeça. 

Das oito as dez Sandro trabalhava sem notar. Entre dez horas e meio-dia trabalhava pensando no almoço. Depois do almoço sonhava em dormir. Depois das três da tarde contava as horas para ir para casa.  Repetiu isso mais três vezes na semana e foi para casa dizendo a todos que descansaria no feriado. 

No feriado fez sol. Sandro saiu de casa para comprar cigarro. No caminho encontrou Oswaldo que era amigo do seu pai, mas que ainda tinha saúde suficiente para comprar cigarro sozinho. Oswaldo comentou sobre o feriado, sobre o sol e disse que não adiantava ir até o mercado da esquina, já que a família que trabalhava ali havia saído de viagem e só voltava na segunda.

Haroldo se balançava na cadeira lembrando a última visita de seu filho. Lembrou que sempre procurou ensinar para Sandro algo sobre a vida, embora Sandro nunca tenha lhe mostrado que aprendeu alguma coisa com seus conselhos. Lembrou também que na última visita Sandro indagou sobre o que teria feito Haroldo se tornar um idoso cheio de limitações. Haroldo já havia chegado a conclusão de que a causa disso era por ter feito planos para um futuro que é sempre incerto. Mas sempre preferiu resumir seu pensamento com a frase:  Naquele tempo as coisas eram diferentes.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

COTIDIANO DO BAR


 Ego bebia no balcão. Ao seu lado estava seu colega de trabalho conhecido como “Idi”, um sujeito magro que estava dormindo com uma pasta de projetos na mão. Coragem e Medo jogavam sinuca. Quem tomava conta de Coragem era Trauma, que quando entrava pela porta do bar mandava Coragem se retirar, e ela obedecia. Enquanto isso, Ego, o cafetão, conversava com a balconista chamada Ganância, que respondia enquanto contava o dinheiro, mas sem esquecer de dar uma boa atenção ao Ego, que por sua vez não tirava os olhos da moça que desfilava pelo salão, conhecida como Vaidade.  

No banheiro quem vomitava era Vergonha, que veio de longe, há muito tempo, dizia que vinha do exterior.

O bar era um pouco bagunçado e sem muito espaço. Nas paredes ficavam pendurados alguns retratos, boas lembranças, enquanto as más memórias eram lembradas pelos mofos, marcas nas paredes, manchas de sangue, etc. que ficavam espalhadas em alguns cantos do bar –  principalmente próximo ao lugar onde Ego costumava sentar. 

Criatividade bebia quieta, em um canto escuro, certa dose de Dopamina bebida que dividia espaço no cardápio com Estrogênio, doses de Adrenalina, Endorfina, também Testosterona, entre outras. Ao lado da Vaidade, que ainda era controlada pelos olhos do Ego, servia-se Libido, que se via dividido entre Ganância e Vaidade, preferia ter as duas, embora por Vaidade ele pagasse. Metade do valor à ela, metade ao Ego.

Na outra mesa de sinuca, Amor e Paixão eram atraentes gêmeas bivitelinas, totalmente diferentes uma da outra. Faziam uma partida contra os gêmeos, Pena e Compaixão, que eram univitelinos.
Pouco depois das 4 horas, chegava o momento em que o proprietário do bar, que controlava tudo com a ajuda de Honra, que embora falhasse, abria as portas para tirar o ar cansado e abafado do ambiente, deixando com que entrasse a neblina da rua. 
Era o momento em que Ego adormecia no balcão e Vaidade e Ganância o levavam para fora. 
Criatividade começava a se divertir,  embriagada fazia piadas e dava sua visão sobre a vida de cada um daqueles que frequentavam aquele lugar, dizia entender “Idi”, e os dois conversavam sobre a neblina.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O cão

Chovia muito e também fazia calor. Eu suava. O carro estragado. Eu sentado, dentro do carro, agradecendo ao acaso por ele ter estragado logo ali na frente daquele bar. Nenhum outro bar, antes ou depois, há menos de 60km e o carro estragara logo ali. Imaginei que meu fim de semana com a família estava estragado também, a partir daquele momento. Enquanto eu pensava, se entrava no bar para comer e mijar ou se bebia e voltava para o carro para dormir, a chuva perdeu força. Vi a tempestade tomar conta do céu indo em direção ao meu destino, eu pensaria em mal pressagio, mas não andava com paciência para superstições naquela época. Era melhor beber, voltar para o carro e dormir, então no outro dia acordaria cedo, daria um jeito no carro e seguiria meu rumo. Aquele banco vazio na varanda do bar me chamava.

Saí do carro, a chuva caia fina, subi os degraus de madeira, atravessei a varanda com a cabeça baixa e então olhei para o lado e o banco que estava vazio, enquanto eu planejava meu destino de dentro do carro, era onde agora estava ela. Negra, cabelo crespo e longo, os lábios vermelhos me chamavam mais que a atenção, eles chamavam meu próprio nome e ela os calava colocando o gargalo da garrafa entre eles. Então voltei para dentro do meu corpo e entrei no recinto.

O velho do balcão, com uma aparência estranha, a pele esverdeada, alcança minha cerveja e não pergunta nada. Ele frita ovos na chapa e eu bebo próximo ao banheiro, como sempre. Não que meus rins sejam fracos, mas quando sentava perto da porta eu costumava arrumar mais confusão. Apenas evito.

Acendi um baseado e o velho de aparência esverdeada apontou para a porta da rua, quase não acreditei. Eu pensei que naquele lugar deserto as leis não valiam, é assim em qualquer lugar. Existe liberdade nos lugares mais remotos, mas apenas nesses lugares. Eu apaguei o cigarro e pensei se era hora de ir para a rua conversar com aquela mulher. Queria saber de onde ela veio ou se ela queria ir para algum lugar. Resolvi esperar mais um pouco.

Coloquei o isqueiro no bolso e pedi outra cerveja. Então quando sinto alguém se aproximar, é ela. Ela passa pelo rádio que estava em uma freqüência incerta e de alguma forma a sintonia capta o sinal de uma rádio local, toca blues. Ela passa por mim, eu sinto o cheiro do perfume dela, parece algo natural, parece que ela acabou de rolar entre flores do campo. Sinto o perfume até ela cruzar a porta do banheiro. Não quis olhar ela nos olhos, ela podia me deixar louco com aqueles grandes olhos castanhos.

Eu vou para a rua e enfim acendo aquele baseado – e lá de dentro o homenzinho verde faz um sinal positivo. Ao menos na rua posso colocar a fumaça que eu quiser para dentro dos meus pulmões. Não dou a terceira tragada e ela aparece ao meu lado, senta e me encara. Eu sinto ela olhar, mas não olho. Ela dá um gole na cerveja, eu ofereço meu cigarro, ela aceita. Pergunto o nome dela e ela finge que não escuta. Me devolve o baseado e pergunta para onde eu vou. Eu respondo e ela diz que conhece muita gente de lá. Eu digo o nome da família que estou indo visitar e ela diz que conhece o Tio Carlos, a mulher dele, comenta sobre ele sofrer de constante paranóia e diz que conhece seus filhos também – Os meus primos, mas eu não quis passar mais informações. Pergunto onde ela vai dormir, ela diz que não vai dormir. Eu desisto de perguntar.

Agora ela já sabe onde eu vou e quem eu conheço. Eu não sei de nada, nem vou saber. Ela não quer que eu saiba. Ficamos observando a chuva começar e parar novamente, ambos em silêncio. Eu sinto um peso nos meus ombros e é a cabeça dela, o cabelo crespo, macio, suas mil voltas, aquele labirinto que tinha o cheiro do campo. Ela está dormindo. Aquela erva deve ter pego ela de surpresa.

Eu não sei quem ela é, eu não sei porque ela está dormindo com a cabeça no meu ombro, não sei se devo deixar ela dormindo ou acordá-la e oferecer meu carro. O blues não para de tocar naquela rádio, raios caem e ela acorda. Ela estica os braços, afastando a preguiça e procurando energia para levantar. Eu pergunto se ela quer dormir no carro. Ela diz que sim. Pago a conta, ela não paga – eu não entendo. Não importa. Ela deita no banco de trás e eu procuro uma estação de rádio e só sintoniza a rádio blues que tocava no bar. Eu empurro o banco para trás e ela coloca a mão no meu peito abrindo os botões da minha camisa com suas unhas vermelhas, eu pulo para o banco de trás. Ela era o diabo.

Acordo com o sol queimando meu rosto. Lembro que preciso ver o que houve com o carro. Abro o capô e mal consigo avaliar a elétrica por causa da forte dor de cabeça. Ela sai do carro pronta para se mandar dali. Eu pergunto para onde ela vai. Ela aponta para uma pequena rua de terra que corta o campo que fica do outro lado da estrada – o que eu não pude notar durante a noite. Pergunto se ela mora ali. Ela não responde. Eu sinto que preciso dormir mais um pouco, fecho o capô. Ela se despede e atravessa a estrada em direção ao campo. Entro no carro, durmo, acordo com fome, tento ligar o carro, ele parece dar resposta. Tento outra vez e ele liga. Eu sigo. A radio toca blues até eu chegar na cidade do Tio Carlos. Ele diz que o diabo anda por aí, solto como nunca, correndo entre os campos. Eu abraço sua mulher e pergunto se ele anda tomando os remédios, ela diz que sim. Na verdade eu sei que ele está certo.