sexta-feira, 20 de junho de 2008

.Valentine

Em passos médios, as vezes rápidos, segue em direção ao seu apartamento com três discos em uma sacola ''branco-amarelado'', e que ganhara dois pequenos furos após as cinzas de seu cigarro cairem sobre a sacola.
Abre a porta do prédio com os ombros, já que na outra mão carregava um embrulho de papel com garrafas e alguns maços do segundo melhor cigarro da cidade, coisa que pra ela era ruim como um vicio, já q gastava seu dinheiro antes em cigarros, depois pensaria como pagar a mensalidade do apartamento, que por sinal era pequeno em vista do valor que pagava as vezes atrasado para que a 'Velha' -pois não sabia seu nome- calasse a boca de poucos dentes.
Caminhando pelo minusculo corredor, próximo as caixas de correspondência via um velho bebado que aproveitava a porta do prédio sempre aberta para sentar no corredor e se abrigar do frio, e naquele dia para fugir da chuva que se aproximava deixando ainda mais cinza aquela cidade falida e sem graça como qualquer cidade satélite.
Valentine, ao chegar no seu apartamento logo fecha as janelas para que a chuva não entre, larga os discos sobre o sofá, e vai até a cozinha largar o embrulho com as bebidas. Ao sentar na mesa coloca as mãos pouco acima das orelhas apoiando os cotovelos sobre a mesa e fazendo com que seu cabelo tape seu rosto, assim fica por um minuto ou dois, respira fundo, levanta a cabeça e quase sem olhar por onde passa a mão pega um cigarro.
Sobre a mesa havia um jornal, algumas contas e um cinzero transbordando fazendo com que ela pensasse no seu vicio. Segue para a sala, senta no chão, a frente do sofá, pega sem selecionar o disco dos The Bigs, uma banda velha de Blues de New Orleans. Fumando e escutando aquele som denso do vinil passa a pensar no que fez durante os 33 anos de vida, na sua carreira falida e sem espectativa de projetista do unico e vagabundo cinema da cidade. Talvez ficar lá dentro sozinha durante horas por dia tenha feito ela desistir de uma vida social com amigos, festas e etc, ou simplesmente fez ela perceber que nada disso faz falta na verdade.
Quando colocaria pra tocar o proximo vinil, a ''Velha'' bate sua porta, ela levanta, apaga o cigarro que ja estava no fim e vai atender a porta antes que a própria senhora abra. Enquanto virava a chave parecia poder sentir o cheito de suor que estava entranhado no pijama que a Velha usava, era algo sujo, com marcas amarelas que poderiam ser baba ou algum antibiótico que a velha havia derrubado a muito tempo atrás.
Enquanto girava a chave a velha ja baixava insistentemente a maçaneta fazendo com que arranhasse as mãos de Valentine, que ao destrancar a porta fez com q a velha saltasse a frente e fosse parar a um passo dentro do apartamento.

-Vai atrazar? - diz a velha com uma vóz rouca mas impositora, quase como a de um general aposentado.
-Depende! - responde com um tom grave e deboxado.
A velha que não foi ali exatamente para fazer perguntas nem muito menos ouvir as respostas curtas de Valentine, simplesmente ignora a resposta e da dois passos a mais para dentro do apartamento e diz:
-Cuida melhor desse lugar!
...é tão sujo quanto um galinheiro-
Era normal da velha pausar o que falava e apenas balbocear durante um tempo, e então seguir seu comentário.

Valentine II

Valentine segura a porta aberta esperando que ela saia, a velha arrasta os pés com seus sapatos comidos, que talvez fosse de seu falecido marido e sai de dentro do apartamento a encarando.
Eram quatro da manhã mais ou menos e Valentine acorda ouvindo barulhos que vinham do apartamento ao lado, que seria da Dona Velha, seria normal para ela dormir -ou não- com os barulhos de digamos ''Limpeza Noturna'' que era um velho hábto da sindica. Com o sono arruinado pelos barulhos vizinhos, Valentine levanta para ir ao banheiro que tinha sua parede encostada no quarto de Dona Velha. Sem querer ouviu uma voz masculina vinda do quarto da vizinha, Dona Velha não tinha marido, e deduzia Valentine que então poderia ser um ladrão ou algo do tipo, como não gostava da velha Valentine apenas verificou se sua porta estava bem trancada, fechou bem as janelas e esperou que enfim a velha fosse espancada, pois para Valentine era o minimo que a credora merecia.
Amanhece e Valentine havia dormido sentada no vaso, enquanto esperava ouvir os gritos de socorro da velha, mas não foi o que ouviu, talvez não tivesse acontecido nada, ou talvez Valentine dormiu tão pesado que não ouviu, isso fez com que ela ficasse um tanto curiosa em saber o que havia acontecido. Ao sair para trabalhar, como de costume já com algumas doses do Whisky Èttan. no sangue, desce com calma os degraus do prédio e sempre com a cabeça erguida
em direção a porta de Velha afim de notar alguma marca de sangue, ou se a velha sairia de dentro do apartamento na mesma hora, mas nada aconteceu. Chegando no corredor já pronta para desviar do mendigo que ficou deitado ali pelo menos durante os 11 meses que Valentine morou naquele predio, se surpreende ao ver que só haviam um cobertor e uma garrafa de Gim vagabundo pela metade.
''Talvez tenha saído para arranjar comida em algum lugar por perto, mas também pode ter sido responsavel pela barulheira noite passada'' - Foi o que passou pela sua cabeça, mas muito rapidamente, Valentine não se preocupava com o que acontecia aos outros, achava que isso só traria mal a ela, era uma espécie de fobia a vida alheia, ela vivia sua vida e Só sua vida.

Valentine III

Na sala de projeção, o filme do dia que seria passado durante cinco seções consecutivas era uma comédia moderna, daquelas bem alienadas, sem um 'pingo' de realismo, cheio de risadas e seqüências musicais felizes e cheias de cores.
Seria mais um dia entediante, já que nem com o filme ela poderia se destrair, o maximo de lazer que teria ali, seria tomar café e pensar sobre coisas vagas, e infelizmente não foi no que ela conseguiu pensar, quando acabou o expediente Valentine notou que havia passado o dia pensando na ultima noite, no mendigo e na Dona Velha.
Quando volta para casa ve que o mendigo havia voltado, mas para buscar suas cobertas, pois elas não estavam mais ali.
Dentro de seu quarto, deitada na cama, Valentine entra em uma espécie de depressão, se culpando por estar se preocupando com a vida alheia e não com a sua, por mais sem graça que fosse devia ter olhos apenas a si mesma, se envolver com outras pessoas poderia lhe trazer conseqüencias ruins, e se envolver com a vida das pessoas poderia fazer ela esquecer de si mesma, uma coisa que não era muito dificil.
Valentine abre outra garrafa, dessa vez no bico, nada de copos, a dose que ela precisava ocupava todos aqueles 600ml de whisky.
Obviamente não toma toda a garrafa, quando nota que precisa de força pra se levantar, e ir ''matar'' o que lhe fazia mal, ela queria resolver naquela noite todas as questões que lhe traziam duvidas e que lhe faziam pensar na vida da Velha.
Apoiando-se na parede consegue chegar até a porta; destranca, e só de lembrar que a velha não estava ali pra lhe encomodar era como se houvesse um vazio, como se até seu inimigo tivesse esquecido dela ou que estavam escondendo -e por que não- algum segredo, e fazia ela ao mesmo tempo se questionar, querer saber por que a vida dos outros voltou a ser tão importante pra ela, se sempre foi disso que ela fugio, e agora só por culpa de uma noite de insonia a vida alheia passou a fazer parte da sua.
Enfrente a porta da Velha, encara o olho magico, e bate na porta, não como uma pessoa normal bateria, bate com a palma mostrando todo o desespero e angustia que tinha dentro dela, e ao mesmo tempo era como se uma segunda personalidade -uma espécie de Antiga Valentine- lhe perguntasse o por que estava ali, e tentava lhe fazer refletir o ponto a que chegou, mas na hora nenhuma reflexão adiantava, só a fazia confunir mais, se culpar e automaticamente a Dona Velha
que a acordou noite passada.
A vontade de chorar só aumentava, até que cansada de bater Valentine põe a mão na maçaneta tentando a sorte, ja pensando que estaria trancada, mas não estava.

.Valentine IV

Um pouco mais aliviada Valentine limpa a mucosa que saia de seu nariz, e se misturava as lagrimas. Passo-a-passo, colocando sempre o olhar a frente de cada comodo ela procura a velha, ao ver que a casa está vazia, passa a olhar algumas fotos antigas que estavam sobre uma estante, até que passando o olhar por varias fotografias ve um casal, de idosos, e fica estática olhando a foto. Era o mendigo do corredor de entrada e a Velha, juntos, sem filhos ou qualquer criança por perto, mas pareciam ser casados, a ira toda voltara e junto uma crise de choro, ela não se conformava em estar dentro da casa de outra pessoa, sabendo da vida de outra pessoa ao invéz de apenas viver sozinha, como ela sempre fez.
A porta abre e ela corre pra cozinha, a velha está sozinha vestindo outras roupas ao invéz do velho pijama, ela se esconde embaixo da mesa e a velha passa pela cozinha, deixa algo sobre a mesa e vai para o quarto, Valentine sai de onde estava, e vai ver o que a velha havia posto ali. RE-HABILITAÇÃO dizia o envelope, embaixo o nome do paciente, era o nome do mendigo do corredor. Ao ver aquilo, e a toda situação que ficou exposta, ao ver que por culpa da sindica havia se envolvido na vida pessoal de outra pessoa, e fazendo assim ter que enfrentar seu maior pânico. Familia, amigos, namorados, nada disso lhe fazia bem, o espaço que pessoas poderiam ocupar na sua vida foram sempre muito bem preechidos por tabaco e alcool, e sozinha ela mesmo podia julgar o que pra ela seria o certo, vivia como um hermitão, morava numa cidade mas não tinha contato social com ninguém, e se houvesse ela não se importava e fazia qualquer tentativa de amizade ser falha, pra ela o único dialogo valido era com sua própria conciencia e era com ela que sempre se sentia confortada, e aquela situação de estar numa espécie de territorio inimigo onde as regras não eram dela lhe trazia desconforto e hostilidade, e como qualquer animal encurralado o unico meio dela sair dali seria matando seu opositor.
Da janela do oitavo andar cai um corpo, no chão já em óbito uma jovem que fez 33 anos a dois dias atrás, foi a única forma de matar o seu maior inimigo, alguém que lhe enchia de traumas, de limites sociais e mentais, alguém que lhe resumia a vicios, um ser depressivo que talvez Valentine não gostasse e por isso lhe matava aos poucos com venenos licitos, drogas que passou a usar como quociente de pequenos traumas, que lhe trouxeram uma espécie de esquizofrenia, que fazia pensar que estava sozinha, que estava longe de todos e que até seus pais fossem meros velhos, tal como uma sindica e um indigente.