segunda-feira, 31 de maio de 2010

Acompanhante de luxo

Fazia tempo que a chuva não chegava tão cedo. Pouco havia amanhecido, ainda havia lua e mal se via o sol. Com talento e roupas claras ela retirava do varal a roupa que eu retiro do corpo dela. Com maestria, com calma e calor, ela fazia a tarefa correndo. Não era inverno nem verão (e continua me confundindo o outono e a primavera), era um dia calmo e afastado das tralhas velhas que deixamos na cidade – nos mudamos para que ela não se perdesse. Era, no sentimento, o fim de uma fase. O final de um capitulo. O começo de outro que não era o ultimo. Pediu um chá e eu preguiçoso resmunguei, mas fiz. Servi e ela me olhava com olhar expressivo e cabelo molhado, secando ao vento que entrava com a chuva fina pela janela da cozinha.

Ainda ofegante me levou para a sala e ligou o rádio. Ela queria passar o dia assim, sem compromisso. Mas ainda havia alguns animais soltos e a chuva forte em breve iria chegar. Eu ainda tinha um livro pra ler, um quadro e outro livro pra terminar de escrever, sem contar com a aula prática no fim da tarde com aquele instrumento que eu nem sei o nome muito bem - Além de ajudar ela com a papelada do velório da mãe que eu tanto amei enterrar. Ela queria um pouco menos de casamento e mais juventude, falou sobre ser muito cobrada, mas não queria ser culpada se por acaso eu não entregasse o livro pronto no prazo exigido. Eu notei que há muito não a via no começo do dia. Nosso tempo juntos era depois das sete, depois de acender as luzes, então eu entrava e no breu lhe estendia a mão – ainda que cansado.

Uma ideia inconsequente me fez corrigir esses problemas sobre a hora e o tempo com ela. Passei a ter insonia e tornei a não dormir. Em cinco dias ela ainda estava lá e eu tinha como escrever, passava o dia com ela e nas madrugadas a maquina criava vida fantástica. Nove dias depois daquele, eu dormi. Acordei e ela me abanava da porta, de longe, me fazendo aprender que a Inspiração sempre nos exige muito.