segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Pouca bobagem

Certo dia fiquei sabendo que meu anjo da guarda havia morrido. ''Bobagem!" Era o que eu também diria há um tempo atrás, mas o pior de tudo, na verdade, foi descobrir que ele um dia existiu.
Eu fiquei sabendo pelo jornal, o que foi um tanto quanto desagradável. Liguei a TV logo que acordei e no jornal do meio-dia vi a notícia.
Diziam os moradores de onde ele vivia que todo dia pela manhã ele acordava cedo e juntava-se a mesa do café da manhã com os outros moradores. Não lembro se eram parentes ou apenas amigos. Daí aconteceu que naquela manhã quando todos se reuniram para o tradicional café da manhã, ele não acordou. A ausência dele na mesa gerou preocupação imediata. Subiram até o quarto e encontraram o corpo sem vida. Já ali no ato começaram a organizar as questões do féretro
, sem choro e sem vela.
Morreu com 101 anos, ou mais. Não lembro. Pena que eu não o conheci. Na foto ele parecia ser simpático. Mas já se foi, agora é bobagem.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Cinefilia Junk

Comecei frequentando o cinema, ainda bem novo. Mas cinema tudo bem, naquela época isso já não era problema, não para famílias liberais como a minha. Hoje em dia todos frequentam ou já frequentaram essas salas de consumo coletivo, apesar do preço alto. Até que certo dia conheci, por meio de amigos, o material que era fornecido em VHS – idéia de um amigo que tinha o aparelho em casa e não se importava em compartilhar. Esse material naquela época ainda saia em conta alugar – isso mesmo, alugar. Reuníamos um pessoal na casa de alguém, rachávamos a grana do aluguel e consumíamos o filme, na maioria das vezes, mais de um. O programa se estendia noite a dentro até o amanhecer. A parte segura dessa forma de consumo, como eu já disse, era por conta do material ser alugado, o que tornava um dever a devolução do produto – rebobinado, claro – para o fornecedor que era chamado Vídeo Locadora.

Ainda são encontradas Vídeo Locadoras por aí em alguns cantos da cidade, mas cuidado, com a chegada do DVD o valor do aluguel se tornou abusivo. E é sobre o prejuízo monetário que eu falarei a seguir, depois de relatar uma fase transitória que pode ser considerada o começo do meu vício, o contato com o Submercado.

Esse Submercado chegou até mim quando experimentei comprar um filme em DVD, e você deve estar imaginando eu em uma loja comprando um produto de qualidade e com preço alto (o que me impediria o vício por razões financeiras), mas não. Foi passando por uma esquina próxima a minha casa que conheci um homem mal vestido que empunhava um estojo repleto de filmes e se identificava apenas como Camelô. Notei no ato que esse rapaz era esperto, tanto por sua agilidade ao buscar pelo material desejado por mim quanto por suas promoções “Dez por seis”. Mergulhei de cabeça nessa, mas não por muito tempo. Os motivos para eu ter abandonado o uso do material do Sr. Camelô foram diversos, por isso vou citar apenas alguns: Os títulos eram limitados, ele demorava para conseguir – quando conseguia – os filmes que sequer entraram em cartaz na cidade ou mais antigos; outro era que ele insistia em me empurrar filmes ruins bolso a dentro; Mas de tantos problemas o que foi crucial para que eu desistisse desse tipo de fornecedor era que, ao chegar em casa, suando, ainda com a roupa usada na faculdade, logo após empurrar o disco para dentro do aparelho, foi tornando-se usual encontrar três problemas que impossibilitavam o consumo. Esses problemas eram: Filme dublado, sem opção de troca do áudio; Filme com áudio original, perfeito, porém sem legenda e o último, contendo o aviso infernal de Disco Inexistente, pois nada havia sido gravado no disco. Foi a partir do problema com o Camelo que me entreguei à uma atividade equivalente ao uso do pirata. Conheci o download e me tornei um usuário digital – talvez procurando uma utilidade para os discos virgens que comprei por engano – ou picaretagem – do amigo Camelô. Esses tempos, em parte, foram bons. Baixei filmes de todos os cantos do mundo, escolhia uma série de títulos e deixava baixando via torrent a noite inteira para que pela manhã, até antes de me alimentar, começasse a usar a obra que desse vontade na hora. Consumi como nunca, consumi por ordem alfabética, por filmografia de diretor, por seguimento ou movimento artístico. Assim, junto com o conhecimento, meu vício aumentava a cada dia. Até eu já me considerava fissurado, ou cinéfilo – termo que meus amigos usavam para me descrever pejorativamente. Aliás, ex-amigos. Troquei meus amigos pelos filmes.

Certo dia, mergulhado na tela 17 polegadas do meu modesto computador – que nem DVD Recorder continha – assistindo outra vez ao The Truman Show, caiu a ficha de que eu, há muito tempo, não assistia um filme na minha TV que era consideravelmente maior que o monitor. Refleti sobre o trabalho que se despendeu nas filmagens e que eu, folgado que era, estava utilizando de uma técnica egoísta ao baixar filmes e após assisti-los despejava o arquivo na lixeira, onde eu jamais jogaria qualquer filme físico enquanto em sã consciência. Aí olhei para minha prateleira que nada de material áudio visual continha, nem sequer uma dose para emergências e - caso houvesse um dia em que eu fosse parar - nem ali existia a dose para acalmar a abstinência. Levantei naquele instante e recuperei a sanidade mental somente na fila do Supermercado, quando embaixo do braço eu carregava alguns títulos clássicos que estavam em promoção eterna naquela loja. Pensava que ali estava eu dando um passo ao começo do fim do vício, já que me prometia nesse instante consumir apenas material com nota fiscal, para evitar transtornos psíquicos e overdoses, coisas que aconteciam com certa frequência quando utilizei de métodos gratuitos. Ledo engano! Depois de ter caminhado por entre locadoras a beira da falência que vendiam seus filmes a “preço de banana”, esperar horas em filas de Supermercados que etiquetavam Fight Club e Pulp Fiction a preço de chocolate e de sebos que sucateavam The Godfather, me cansei. Era injustiça não dar o valor necessário aquelas obras que o vento há de levar. Agora a dependência deixava de ser apenas física, contudo o problema também se tornava psíquico quando eu não pagava o valor que eu achava que deveria pagar para ter em minha casa tal obra.

Problemas com essa dependência eu tive muitos e ainda tenho. Devo confessar que não consegui me livrar do vício, mas agora admito que uso apenas coisas licitas, com nota fiscal e certificado de boa procedência, certificação essa dada pelos amigos da crítica que costumam avisar quando o produto não vai cair bem a certos usuários mais exigentes.

Agora é dezembro e nesse apartamento pequeno e úmido, onde me submeti a morar para que meu salário renda mais filmes, e com o estomago encolhido por uma dieta de macarrão instantâneo, me dispus a empurrar hoje pela manhã meu décimo terceiro salário ao caixa da maior livraria da cidade – descontado o aluguel e o macarrão do mês – para a aquisição mais pesada da minha vida.

Vi com os olhos marejados a moça do caixa colocar na sacola da maior livraria da cidade aqueles quatro boxes. Jean-Luc, Federico, Bernardo e François.