quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O cão

Chovia muito e também fazia calor. Eu suava. O carro estragado. Eu sentado, dentro do carro, agradecendo ao acaso por ele ter estragado logo ali na frente daquele bar. Nenhum outro bar, antes ou depois, há menos de 60km e o carro estragara logo ali. Imaginei que meu fim de semana com a família estava estragado também, a partir daquele momento. Enquanto eu pensava, se entrava no bar para comer e mijar ou se bebia e voltava para o carro para dormir, a chuva perdeu força. Vi a tempestade tomar conta do céu indo em direção ao meu destino, eu pensaria em mal pressagio, mas não andava com paciência para superstições naquela época. Era melhor beber, voltar para o carro e dormir, então no outro dia acordaria cedo, daria um jeito no carro e seguiria meu rumo. Aquele banco vazio na varanda do bar me chamava.

Saí do carro, a chuva caia fina, subi os degraus de madeira, atravessei a varanda com a cabeça baixa e então olhei para o lado e o banco que estava vazio, enquanto eu planejava meu destino de dentro do carro, era onde agora estava ela. Negra, cabelo crespo e longo, os lábios vermelhos me chamavam mais que a atenção, eles chamavam meu próprio nome e ela os calava colocando o gargalo da garrafa entre eles. Então voltei para dentro do meu corpo e entrei no recinto.

O velho do balcão, com uma aparência estranha, a pele esverdeada, alcança minha cerveja e não pergunta nada. Ele frita ovos na chapa e eu bebo próximo ao banheiro, como sempre. Não que meus rins sejam fracos, mas quando sentava perto da porta eu costumava arrumar mais confusão. Apenas evito.

Acendi um baseado e o velho de aparência esverdeada apontou para a porta da rua, quase não acreditei. Eu pensei que naquele lugar deserto as leis não valiam, é assim em qualquer lugar. Existe liberdade nos lugares mais remotos, mas apenas nesses lugares. Eu apaguei o cigarro e pensei se era hora de ir para a rua conversar com aquela mulher. Queria saber de onde ela veio ou se ela queria ir para algum lugar. Resolvi esperar mais um pouco.

Coloquei o isqueiro no bolso e pedi outra cerveja. Então quando sinto alguém se aproximar, é ela. Ela passa pelo rádio que estava em uma freqüência incerta e de alguma forma a sintonia capta o sinal de uma rádio local, toca blues. Ela passa por mim, eu sinto o cheiro do perfume dela, parece algo natural, parece que ela acabou de rolar entre flores do campo. Sinto o perfume até ela cruzar a porta do banheiro. Não quis olhar ela nos olhos, ela podia me deixar louco com aqueles grandes olhos castanhos.

Eu vou para a rua e enfim acendo aquele baseado – e lá de dentro o homenzinho verde faz um sinal positivo. Ao menos na rua posso colocar a fumaça que eu quiser para dentro dos meus pulmões. Não dou a terceira tragada e ela aparece ao meu lado, senta e me encara. Eu sinto ela olhar, mas não olho. Ela dá um gole na cerveja, eu ofereço meu cigarro, ela aceita. Pergunto o nome dela e ela finge que não escuta. Me devolve o baseado e pergunta para onde eu vou. Eu respondo e ela diz que conhece muita gente de lá. Eu digo o nome da família que estou indo visitar e ela diz que conhece o Tio Carlos, a mulher dele, comenta sobre ele sofrer de constante paranóia e diz que conhece seus filhos também – Os meus primos, mas eu não quis passar mais informações. Pergunto onde ela vai dormir, ela diz que não vai dormir. Eu desisto de perguntar.

Agora ela já sabe onde eu vou e quem eu conheço. Eu não sei de nada, nem vou saber. Ela não quer que eu saiba. Ficamos observando a chuva começar e parar novamente, ambos em silêncio. Eu sinto um peso nos meus ombros e é a cabeça dela, o cabelo crespo, macio, suas mil voltas, aquele labirinto que tinha o cheiro do campo. Ela está dormindo. Aquela erva deve ter pego ela de surpresa.

Eu não sei quem ela é, eu não sei porque ela está dormindo com a cabeça no meu ombro, não sei se devo deixar ela dormindo ou acordá-la e oferecer meu carro. O blues não para de tocar naquela rádio, raios caem e ela acorda. Ela estica os braços, afastando a preguiça e procurando energia para levantar. Eu pergunto se ela quer dormir no carro. Ela diz que sim. Pago a conta, ela não paga – eu não entendo. Não importa. Ela deita no banco de trás e eu procuro uma estação de rádio e só sintoniza a rádio blues que tocava no bar. Eu empurro o banco para trás e ela coloca a mão no meu peito abrindo os botões da minha camisa com suas unhas vermelhas, eu pulo para o banco de trás. Ela era o diabo.

Acordo com o sol queimando meu rosto. Lembro que preciso ver o que houve com o carro. Abro o capô e mal consigo avaliar a elétrica por causa da forte dor de cabeça. Ela sai do carro pronta para se mandar dali. Eu pergunto para onde ela vai. Ela aponta para uma pequena rua de terra que corta o campo que fica do outro lado da estrada – o que eu não pude notar durante a noite. Pergunto se ela mora ali. Ela não responde. Eu sinto que preciso dormir mais um pouco, fecho o capô. Ela se despede e atravessa a estrada em direção ao campo. Entro no carro, durmo, acordo com fome, tento ligar o carro, ele parece dar resposta. Tento outra vez e ele liga. Eu sigo. A radio toca blues até eu chegar na cidade do Tio Carlos. Ele diz que o diabo anda por aí, solto como nunca, correndo entre os campos. Eu abraço sua mulher e pergunto se ele anda tomando os remédios, ela diz que sim. Na verdade eu sei que ele está certo.